Crianças podem participar da Ceia do Senhor?
Por: João Calvino
30. REFUTAÇÃO DA DÉCIMA QUINTA OBJEÇÃO CONTRA O BATISMO INFANTIL: SE ÀS CRIANÇAS É FACULTADO O BATISMO, NÃO MENOS DEVERIA ADMITI-LOS À SANTA CEIA.
Finalmente objetam que, segundo esta razão, deveria administrar-se a Ceia do Senhor às crianças, as quais, no entanto, de modo algum são admitidas. Como se a Escritura não assinalasse de todas as formas haver entre eles larga diferença! De fato, foi isto frequentemente praticado na Igreja antiga, como se constata de Cipriano e Agostinho; mas esse costume, com razão, se fez obsoleto. Ora, se ponderarmos a natureza e o caráter específico do batismo, na realidade ele é um como que ingresso e uma, pode-se dizer, iniciação à Igreja, mercê da qual somos contados no povo de Deus: sinal de nossa regeneração espiritual, através da qual somos nascidos de novo para ser filhos de Deus; quando, em contrapartida, a Ceia foi atribuída aos mais adultos que, ultrapassada a infância mais tenra, já estejam em condições de suportar alimento sólido, distinção que se demonstra mui evidentemente na Escritura; porque aí, quanto concerne ao batismo, o Senhor não faz nenhuma seleção de idades.
A Ceia, porém, não a exibe à participação de todos igualmente; pelo contrário, somente àqueles que sejam idôneos para discernir-se o corpo e o sangue do Senhor, para examinar-se a própria consciência, a anunciar-se a morte do Senhor, a ponderar-se sua eficácia. Queremos algo mais evidente do que o que o Apóstolo ensina, quando exorta que “cada um se prove e examine a si mesmo, e então coma do pão e beba do cálice” [1 Co 11.28]? Impõe-se, pois, examinar-se primeiro, o que em vão se espera de crianças. De igual modo: “Quem come indignamente, come e bebe para si condenação, não discernindo o corpo do Senhor” [1 Co 11.29]. Se não podem participar dignamente, senão aqueles que saibam distinguir corretamente a santidade do corpo de Cristo, por que a nossos filhos ainda tenros ofereçamos veneno em vez de alimento vivificante? Que significa este preceito do Senhor: “Fazei-o em memória de mim” [Lc 22.19; 1Co 11.25]? Que significa este outro preceito que o Apóstolo deduz daí: “Sempre que comerdes este pão, anunciais a morte do Senhor até que ele venha” [1 Co 11.26]? Que memória deste fato, pergunto, exigiremos de crianças, memória que nunca apreenderam pelo senso? Que pregação da cruz de Cristo, cuja virtude e benefício ainda não compreendem com a mente?
Nada dessas coisas se prescreve no batismo, porquanto mui grande é a diferença entre estes dois sinais, os quais também já notamos em sinais similares sob o Antigo Testamento. A circuncisão, com efeito, que se observou ser correspondente ao nosso batismo, fora destinada às crianças [Gn 17.12]. A páscoa, porém, cujo lugar assume agora a Ceia, não admitia a todos e quaisquer convivas indiscriminadamente; antes, era corretamente comida por aqueles que, pela idade, pudessem indagar-lhe a respeito do significado [Ex 12.26]. Se uma simples migalha de cérebro sadio restasse a esses, porventura se fariam cegos para uma causa tão clara e óbvia? (Institutas, IV, 16.30)
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14º. Se os pequeninos devem ser batizados, por que não devem receber a Ceia?
(…) se considerarmos a natureza e as características do Batismo, veremos que este sacramento é o primeiro ingresso que temos para sermos reconhecidos como membros da igreja, e para termos lugar entre os que compõem o povo de Deus. Isso porque ele é o símbolo e sinal da nossa regeneração e do nosso nascimento espiritual, que constituem o ato de Deus pelo qual somos feitos Seus filhos. Diversamente, a Ceia foi ordenada para aqueles que, tendo passado pela primeira infância, estão aptos a nutrir-se de alimento sólido. Disso a Palavra de Deus nos dá evidente prova. Porque, quando fala do Batismo, ela não faz nenhuma distinção de idade, mas não permite que a Ceia seja comunicada senão aos que podem discernir o corpo do Senhor, podem examinar-se e comer, e podem anunciar a morte do Senhor. Vamos querer palavras mais claras que essas? “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice”. É necessário, pois, que o participante faça exame de consciência antes de comer do pão e beber do cálice. Também diz o texto bíblico: “Aquele que comer o pão ou beber o cálice, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor”. Se não se pode participar dignamente sem prévio exame próprio, por que haveríamos de submeter as nossas crianças a juízo e condenação ministrando a elas a Ceia? Diz mais a Escritura: “Fazei isto em memória de mim… Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha”. Como poderiam anunciar a morte do Senhor os bebês, que ainda não conseguem nem falar? Nada disso se requer para o Batismo. Portanto, é grande a diferença existente entre estes dois sinais, ocorrendo o mesmo sob o Antigo Testamento com os dois sinais que correspondem ao Batismo e à Ceia. Porque a Circuncisão, que se ministrava em lugar do Batismo, era aplicada aos bebês, mas do cordeiro pascal, em lugar do qual temos agora a Ceia, só participavam os filhos capazes de perguntar pelo seu sentido. (Ex 12.26)…
João Calvino. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Editora Cultura Cristã, Vol. 3, Cap. XI
Sobre o autor: João Calvino
João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.
Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.
Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]
Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.
Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".