A teologia de João Calvino
Por: Timothy George
As concepções teológicas do reformador João Calvino (1509-1564) estão contidas na sua vasta obra, especialmente em seu opus magnum, a Instituição da Religião Cristã ou Institutas.
1. AS INSTITUTAS
No prefácio da 1ª Edição das Institutas (1536), Calvino afirmou o seguinte:
“Pretendi apenas fornecer algum ensino elementar através do qual qualquer pessoa que tenha sido tocada por um interesse na religião pudesse ser educada na verdadeira piedade. E fui especialmente diligente nessa obra por causa do nosso próprio povo da França. Vi muitos deles com fome e sede de Cristo, mas muito poucos imbuídos com até mesmo um pequeno conhecimento dele. Que é isto que propus, o próprio livro testifica através de sua forma de ensino simples e até mesmo rudimentar”.
Essa primeira edição tinha apenas seis capítulos, que tratavam dos seguintes temas: (1) A lei: exposição do Decálogo; (2) A fé: exposição do Credo dos Apóstolos; (3) A oração: exposição da Oração Dominical; (4) Os sacramentos; (5) Os cinco falsos sacramentos; (6) A liberdade cristã, o poder eclesiástico e a administração política.
Na 2ª edição das Institutas (1539), o reformador passou a ter outro objetivo em mente:
“Minha intenção nesta obra foi preparar e treinar de tal modo na leitura da Palavra Divina os aspirantes à teologia sagrada que eles possam ter fácil acesso à mesma e depois nela prossigam sem tropeçar. Pois penso que abrangi de tal maneira a suma da religião em todas as suas partes, dispondo-a em ordem, que todos os que a assimilarem corretamente não terão dificuldade em determinar tanto o que devemos buscar de modo especial nas Escrituras quanto para que objetivo devem direcionar tudo o que está contido nas Escrituras”.
2. CATEGORIAS DE ESCRITOS
As concepções teológicas de Calvino encontram-se em seis categorias de escritos:
2.1. As Institutas: Calvino produziu ao todo oito edições do texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A 1ª edição tinha apenas seis capítulos; a última totalizou oitenta. Equivale em tamanho ao Antigo Testamento mais os Evangelhos sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos. Visava ser um guia para o estudo das Escrituras.
Livro I: O Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a providência.
Livro II: O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a corrupção humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Mediador – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra (expiação).
Livro III: A Maneira Como Recebemos a Graça de Cristo, Seus Benefícios e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, predestinação, ressurreição final.
Livro IV: Os Meios Externos Pelos Quais Deus nos Convida Para a Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo civil.
2.2. Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías.
2.3. Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Velho Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contém 872 sermões de Calvino.
2.4. Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra católicos e anabatistas) e gerais.
2.5. Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas perseguidas e protestantes encarcerados, pastores, colportores.
2.6. Escritos litúrgicos e catequéticos: confissão de fé, catecismo, saltério.
3. A PERSPECTIVA TEOLÓGICA DE CALVINO
3.1. O conhecimento de Deus
A verdadeira sabedoria consiste de dois elementos: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Daí a importância da revelação. Não podemos conhecer a Deus em sua essência, mas somente na medida em que ele se dá a conhecer a nós. Existe um duplo conhecimento de Deus: como criador e como redentor. Todo ser humano é essencialmente uma criatura religiosa, tendo em si a “semente da religião”. Deus se revela não só através desse senso inato de si mesmo, mas também através das maravilhas da criação. Esse conhecimento de Deus revelado na natureza exige uma resposta humana, seja de piedade ou idolatria. O fim último da piedade não é a salvação individual, mas a glória de Deus.
3.2. A condição humana
O pecado torna a revelação natural totalmente insuficiente para o correto conhecimento de Deus. Ela tem somente uma função negativa – deixar os seres humanos inescusáveis por sua idolatria. O ser humano encontra-se perdido como que em um labirinto. A imagem de Deus ainda permanece nele, mas foi totalmente distorcida e desfigurada.
3.3. O Deus que se revela
Todo verdadeiro conhecimento de Deus decorre do fato de que Deus, em sua misericórdia, houve por bem revelar-se. Calvino usa aqui o conceito de “acomodação” ou adaptação. Deus desce ao nosso nível, adapta-se à nossa capacidade. Vemos isso na encarnação, nas Escrituras, nos sacramentos e na pregação.
Nas Escrituras, Deus balbucia a nós, fala-nos como uma ama fala a um bebê. Outra figura: a Bíblia é como óculos divinos para os que são espiritualmente míopes. Assim, a verdadeira teologia é uma reverente reflexão sobre a revelação escrita de Deus; não deve, pois, perder-se em “vãs especulações”, mas ater-se às Escrituras.
3.4. A doutrina das Escrituras
A Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem humana e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo. Calvino tratava o texto bíblico tanto reverentemente quanto criticamente (por exemplo, At 7.14 e Gn 46.27). A capacidade de reconhecer a Bíblia como a Palavra de Deus não depende de provas, mas é um dom gratuito do próprio Deus.
Calvino afirma a unidade entre a Palavra e o Espírito contra dois erros opostos. Os católicos subestimavam o papel da iluminação ao subordinarem as Escrituras à igreja. Calvino, como Lutero, afirmou que as Escrituras foram o ventre do qual nasceu a igreja, e não vice-versa. Por outro lado, os “fanáticos” concentravam-se de tal modo no Espírito que subestimavam a Palavra escrita.
Toda a teologia de Calvino foi elaborada dentro destes parâmetros: a objetividade da revelação divina nas Escrituras e o testemunho iluminador do Espírito Santo no crente. A verdadeira teologia deve manter-se dentro dos limites da revelação.
A função principal das Escrituras é a nossa edificação, capacitando-nos a ver o que de outro modo seria impossível. Seu propósito é revelar o que precisamos saber sobre Deus e nós mesmos.
4. O DEUS QUE AGE
4.1. O Deus trino
Calvino deu mais atenção à doutrina da trindade que Lutero ou Zuínglio. Ele basicamente sustentou a doutrina da igreja antiga de que Deus é uma única essência que subsiste em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ele advertiu quanto a especulações sobre o mistério da essência divina e recusou-se a torcer a Escrituras para sustentar essa doutrina.
Como no caso de Atanásio, no quarto século, a Trindade era fundamental por ser um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da certeza da salvação realizada por ele. Somente alguém que era verdadeiramente Deus poderia redimir os que estavam totalmente perdidos.
A fé na trindade é confessada na liturgia do batismo e na doxologia, não para definir plenamente o ser de Deus, mas somente para permanecer em silêncio diante do mistério da sua presença (Agostinho).
4.2. Criação
A seguir, ainda no Livro I das Institutas, Calvino descreve a atividade de Deus em relação ao mundo na criação e na providência. O mundo criado é o “deslumbrante teatro” da glória de Deus. Depois que as pessoas são iluminadas pelo Espírito Santo e têm o auxílio dos “óculos” das Escrituras, a criação pode fornecer um conhecimento de Deus mais lúcido e edificante (teologia da natureza), fortalecendo a fé dos crentes.
Deus criou o mundo a partir do nada (ex nihilo). O mundo foi criado para a glória de Deus, mas também para o benefício da humanidade. Os crentes devem contemplar a bondade de Deus em sua criação de tal modo que seus próprios corações sejam despertados para o louvor (Jonathan Edwards).
4.3. Providência
Calvino reflete acerca do caráter precário e incerto da vida humana sobre a terra. Sua doutrina da providência não reflete um otimismo piedoso, mas resulta de uma avaliação realista das vicissitudes da vida e da ansiedade que elas produzem.
Ele critica duas concepções errôneas: o fatalismo e o deísmo. A doutrina estóica do destino pressupõe que todos os eventos são governados pela necessidade da natureza. Calvino pondera que, na concepção cristã, o “regente e governador de todas as coisas” não é uma força impessoal, mas o Criador pessoal do universo, que em sua sabedoria decretou desde a eternidade o que iria fazer e agora em seu poder realiza o que decretou.
Ele também combate a idéia de que Deus fez o mundo no princípio, mas depois o deixou entregue a si mesmo. Como mostram as Escrituras, Deus está contínua e eficazmente envolvido no governo da sua criação. Assim, a providência é uma espécie de continuação do processo criador, tanto nos grandes como nos pequenos eventos.
Essa ênfase na atividade imediata e direta de Deus no mundo leva Calvino a rejeitar a teoria traducianista da origem da alma, a idéia de que a alma é transmitida de geração a geração pelo processo da procriação humana (Lutero). Calvino cria que, toda vez que uma criança é gerada, Deus cria uma nova alma ex nihilo.
Apesar de sua interação direta com o mundo, Deus também pode usar causas secundárias para realizar a sua vontade. Ele pode até mesmo usar instrumentos maus (como Satanás e suas hostes), transformando o mal em bem.
Se Deus decreta cada evento, onde fica a responsabilidade humana? Calvino responde que a providência de Deus não atua de modo a negar ou tornar desnecessário o esforço humano. As próprias ações humanas são um dos meios pelos quais Deus realiza os seus propósitos.
O governo divino de todos os eventos não torna Deus o autor do pecado? Assim como Lutero, Calvino distingue entre a vontade revelada e a vontade oculta de Deus. Ao enviar Cristo para a cruz, a Bíblia diz que Herodes e Pilatos estavam cumprindo o que Deus havia determinado (Atos 4.27-28). Ao mesmo tempo, eles também estavam violando a vontade expressa de Deus revelada em sua lei.
Vez após vez Calvino apela ao mistério e incompreensibilidade das ações de Deus. O problema do mal é tão difícil precisamente porque não podemos entender como as tragédias da vida contribuem para a maior glória de Deus.
A fé verdadeira percebe que, por trás dos sofrimentos, que em si mesmos são maus, existe um Pai de justiça, sabedoria e amor que prometeu nunca abandonar-nos. Nessas questões, não se pode submeter Deus aos padrões humanos de julgamento.
5. O CRISTO QUE SALVA
5.1. A doutrina do pecado
A partir do Livro II das Institutas, Calvino trata de Deus, o Redentor. Calvino geralmente é visto como o autor de uma concepção totalmente pessimista do ser humano. Todavia, o reformador sempre mostrou profunda apreciação pelas realizações humanas na ciência, literatura, arte e outras áreas, atribuindo-as à graça comum de Deus. A imagem de Deus no ser humano está terrivelmente deformada, mas não inteiramente apagada.
Todavia, as muitas virtudes e dons da natureza humana nada valem para alcançar a justificação. Para entender plenamente a natureza humana, é preciso olhar para Jesus Cristo, o verdadeiro ser humano.
Calvino define o pecado original como “uma depravação e corrupção hereditária de nossa natureza, difundida em todas as partes da alma, que primeiramente nos torna sujeitos à ira de Deus e depois também produz em nós aquelas obras que a Escritura chama de ‘obras da carne’” (Inst., 2.1.8).
Vale destacar dois aspectos: (a) não podemos simplesmente culpar Adão por nossa condição pecaminosa; o pecado de Adão é também o nosso pecado; (b) o pecado original não se limita a uma dimensão da pessoa humana, mas permeia toda a vida e a personalidade.
Pecado não é somente o ato, mas a inclinação da própria natureza humana em sua condição decaída. Cometemos pecados porque somos pecadores. A essência do pecado de Adão, que se repete em diferentes graus nos seus descendentes, é orgulho, desobediência, incredulidade e ingratidão. Somente a consciência da nossa total pecaminosidade pode preparar-nos para ouvir as boas novas da libertação do pecado através de Jesus Cristo.
5.2. A pessoa de Cristo
A teologia de Calvino é profundamente cristocêntrica e o tema que domina a sua cristologia não é o conhecimento de Cristo em sua essência, mas em seu papel salvífico como Mediador. A revelação de Deus em Cristo é o supremo exemplo da sua acomodação à capacidade humana. Precisamos de um Mediador tanto por sermos pecadores quanto por sermos criaturas.
Cristo como Mediador é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1 Tm 3.16). Ele é o Verbo eterno de Deus gerado do Pai antes de todas as eras, que, em sua encarnação, ocultou a sua divindade sob o “véu” da sua carne.
Uma formulação peculiar da cristologia de Calvino é o chamado extra Calvinisticum: a noção de que o Filho de Deus tinha uma existência “também fora da carne”. Ver Institutas 2.13.4.
5.3. A obra de Cristo
Mais importante que conhecer a essência de Cristo é conhecer com que propósito ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de Cristo em conexão com o seu tríplice ofício de Profeta, Rei e Sacerdote, todos os quais eram ungidos no Antigo Testamento, prefigurando o Messias.
Como Profeta, ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e testemunha da graça de Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e pregação. Na qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo; um dia sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Em seu ofício sacerdotal, ele foi um Mediador puro e imaculado que aplacou a ira de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.
Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra maneira, mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase não tanto à justiça de Deus, mas à sua ira e amor, ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a morte de Cristo tem efeito redentor, mas toda a sua vida, ensinos, milagres e sua contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra expiatória de Cristo tem também um aspecto subjetivo, pelo qual somos chamados a uma vida de obediência.
6. A VIDA NO ESPÍRITO
Toda a obra de Calvino pode ser interpretada como um esforço de formular uma espiritualidade autêntica, isto é, uma vida no Espírito, baseada na Palavra de Deus revelada, vivida no contexto da igreja e direcionada para o louvor e a glória de Deus. O Livro 3 das Institutas é um belo tratado sobre a vida cristã no qual Calvino elabora uma grande quantidade de tópicos como a obra do Espírito Santo, fé e regeneração, arrependimento, negação de si mesmo, justificação, santificação, oração, eleição e ressurreição. Três deles merecem destaque especial:
6.1. Fé
Calvino começa por rejeitar certas noções equivocadas: “fé histórica” (mero assentimento intelectual), “fé implícita” (submissão ao juízo coletivo da igreja), “fé informe” (estágio preliminar da fé). O que é então a fé? “Um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada gratuitamente em Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo” (Institutas 3.2.7).
Antes de ser uma capacidade inata do ser humano, é um dom sobrenatural do Espírito Santo. É também uma resposta humana genuína pela qual os eleitos ingressam na sua nova vida em Cristo. Entre os efeitos da fé estão a regeneração, o arrependimento e o perdão dos pecados.
O arrependimento é “a verdadeira conversão de nossa vida a Deus, procedente de um sincero e real temor de Deus, que consiste da mortificação de nossa carne e do velho homem e da vivificação do espírito” (Inst. 3.3.5). É um processo contínuo que deve estender-se por toda a vida.
Embora possa ser assaltada por dúvidas, a fé verdadeira por fim triunfará sobre todas as dificuldades. Os descrentes podem, quando muito, ter uma “fé temporária”. Já os crentes verdadeiros, ainda que cometam pecados, mesmo pecados graves, são sustentados pelo Espírito e finalmente não irão perder-se.
6.2. Oração
O mais longo capítulo das Institutas é dedicado à oração, que Calvino chamou “o principal exercício da fé e o meio pelo qual recebemos diariamente os benefícios de Deus”. Porém, se toda a vida cristã, desde o primeiro passo até a perseverança final, é um dom de Deus, por que orar? A resposta é que os fiéis não oram para informar ou convencer Deus de alguma coisa, mas para expressarem sua fé, confiança e dependência dele.
Calvino propôs quatro regras para a oração: (a) reverência: evitar toda ostentação ou arrogância; (b) contrição: deve proceder de um coração arrependido; (c) humildade: ter em mente a glória de Deus; (d) confiança: firme esperança de que a oração será respondida. Isso se aplica tanto à oração individual quanto às orações coletivas da igreja. A oração é a parte principal do culto a Deus (Is 56.7; Mt 21.13).
6.3. Predestinação
Calvino usou a palavra “predestinação” pela primeira vez na edição de 1539 das Institutas. A sua doutrina nessa área não tem nada de original: nos pontos essenciais ele não difere de Lutero, Zuínglio ou Bucer, os quais recorreram todos a Agostinho. A inovação de Calvino consistiu no lugar em que colocou a doutrina em seu sistema teológico, não em conexão com a doutrina da providência (Livro I), mas no final do Livro III, que trata da aplicação da obra da redenção.
Calvino não começou com a predestinação e depois foi para a expiação, regeneração, justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um problema resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho é proclamado, alguns respondem e outros não? Nessa diversidade, ele afirmou, torna-se manifesta a maravilhosa profundidade do juízo de Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.
A doutrina de Calvino sobre a predestinação pode ser resumida em três termos: (a) absoluta: não é condicionada por quaisquer circunstâncias finitas, mas repousa exclusivamente na vontade imutável de Deus; (b) particular: aplica-se a indivíduos e não a grupos de pessoas; Cristo não morreu por todos indiscriminadamente, mas somente pelos eleitos; (c) dupla: Deus em sua misericórdia ordenou alguns indivíduos para a vida eterna e em sua justiça ordenou outros para a condenação eterna.
Calvino cria que essa doutrina era claramente encontrada nas Escrituras e não queria dizer nada sobre a predestinação que não pudesse ser tomado da Bíblia. Ele também não permitiu que a doutrina fosse usada como desculpa para não proclamar o evangelho a todos. De fato, na história da igreja, alguns dos maiores evangelistas e missionários foram firmes defensores dessa doutrina (George Whitefield, Jonathan Edwards).
7. OS MEIOS EXTERNOS DE GRAÇA
No Livro IV das Institutas, Calvino trata dos seguintes temas: a igreja verdadeira e seus oficiais, o desvios do romanismo, os sacramentos, o governo civil. Calvino também aborda essas questões nos seus comentários das Epístolas Pastorais.
7.1. Pressupostos
Calvino, mais que os outros reformadores, preocupou-se com a relação entre a igreja invisível e a igreja como uma instituição que pode ser reconhecida como verdadeira através de certas marcas distintivas. As marcas que constituem a igreja visível são, acima de tudo, a correta pregação da Palavra e a fiel ministração dos sacramentos. Embora não tenha incluído a disciplina eclesiástica entre as marcas da igreja, ele certamente a valorizava.
A preocupação de Calvino com a ordem e a forma da congregação resultou de sua ênfase na santificação como o processo e o alvo da vida cristã. Em contraste com a ênfase luterana unilateral na justificação, Calvino deu precedência à santificação. O contexto da santificação é a igreja visível, na qual os eleitos participam dos benefícios de Cristo não como indivíduos isolados, mas como membros de um corpo. Assim, a igreja visível torna-se uma “comunidade santa”.
A eclesiologia de Calvino tem dois pólos em contínua tensão: a eleição divina (igreja invisível) e a congregação local (igreja visível). Por isso, a igreja ao mesmo tempo enfrenta perigos mortais e é preservada por Deus. A igreja visível é um corpo misto composto de trigo e joio; já a igreja invisível compõe-se de todos os eleitos (inclusive anjos, fiéis do Velho Testamento e eleitos que se encontram fora da igreja verdadeira).
7.2. A igreja como mãe e escola
A igreja é a mãe de todos os crentes porque os leva ao novo nascimento através da Palavra de Deus, bem como os educa e alimenta durante toda a sua vida. Esse caráter maternal da igreja é visto de modo especial na sua ministração dos sacramentos.
O batismo é o ingresso do crente na igreja e o símbolo de sua união com Cristo. Ele visa confirmar a fé dos eleitos, mas deve ser aplicado a todos os que estão na igreja visível. Quanto à Santa Ceia, Calvino adotou uma posição intermediária entre Lutero e Zuínglio. Embora Cristo esteja nos céus à destra do Pai, a ceia não é mero símbolo, mas um meio de “verdadeira participação” em Cristo (Inst. 4.17.10-11).
A igreja é também uma escola que instrui seus alunos no caminho da santidade. Essa instrução perdura por toda a vida e também se dirige aos alunos rebeldes, na esperança de que um dia sejam transformados.
7.3. Ordem e ofício
Calvino encontrou nas Escrituras o quádruplo ofício de pastor, mestre, presbítero e diácono, que é a base da forma de governo incorporada nas Ordenanças Eclesiásticas.
Ele cria que os ofícios de profeta, apóstolo e evangelista eram temporários e cessaram no final da era apostólica. Dentre os ofícios que permaneceram, o de pastor é o mais honroso e o mais necessário para a ordem e o bem-estar da igreja. Depois da aceitação de doutrinas puras, a nomeação de pastores é a coisa mais importante para a edificação espiritual da igreja.
Para ser escolhido, o aspirante deve preparar-se e depois ser comissionado publicamente segundo a ordem prescrita pela igreja. Em Genebra, esse processo incluía a companhia de pastores, o conselho municipal e a igreja. A ordenação é um rito solene de instalação no ofício pastoral.
As funções dos pastores são ensino, pregação, governo e disciplina. Os pastores devem ter um profundo conhecimento das Escrituras para que possam instruir corretamente as suas igrejas. Sua pregação deve revelar conhecimento e habilidade para ensinar. A pregação visa a edificação da igreja e deve ser prática e perspicaz. A função disciplinar do pastor requer que a sua própria conduta esteja acima de qualquer suspeita.
7.4. A igreja e o mundo
Calvino rejeitou o conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da sociedade e cultura circundantes. A relação entre a igreja e o mundo inclui tanto tensão quanto interação. O seu entendimento do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a criação, e não somente sobre a igreja, levou-o a defender a participação na sociedade.
O governo de Cristo deve manifestar-se idealmente através de governantes piedosos. Os magistrados deviam manter a ordem cívica e a uniformidade religiosa. Todavia, igreja e estado têm esferas separadas e autônomas de atuação. Os cristãos devem obedecer até mesmos os governantes que oprimem a igreja, orando por seu bem-estar, porque foram instituídos por Deus.
Fonte:
George, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994.
Sobre o autor: Timothy George
É diretor-fundador e professor de teologia da Beeson Divinity School. Ele é mestre em teologia pela Harvard Divinty School e doutor na mesma área pela Harvard University. Ensina história da igreja, teologia histórica e teologia dos reformadores. Além disso, é editor-executivo da Christianity Today e participa também do conselho editorial da The Harvard Theological Review, Christian History e Books & Culture. É casado com Denise e pai de Christian e Alyce.