Divórcio e Novo Casamento

Por: John Murray

Tradução de Caio Leite

“Eu digo a vocês, qualquer um repudiar sua mulher, sem ser por fornicação, e casar com outra; comete adultério. E o que casar com a repudiada também comete adultério” Mateus 19:9.

A respeito do divórcio, e de suas implicações, dentre todos os relatos, esta é a passagem mais fundamental no Novo Testamento. Ela ocupa essa posição crucial, particularmente porque é a única passagem do Novo Testamento na qual temos a combinação de duas cláusulas: A cláusula excepcional (mhepiporneia) e a cláusula do novo casamento (kaigamhsh allhn). Ambas estas cláusulas ocorrem em outras partes, a primeira em Mateus 5:32 (no parekto "logou porneia") e a última em Marcos 10:11 (também na forma kai gamwn eteran em Lucas 16:18). Mas somente em Mateus 19:9 elas são simultâneas.

Não parece ser apropriado dizer que não haveria dúvida quanto à legitimidade de um novo casamento (por parte do cônjuge inocente após o divórcio por adultério) se não tivéssemos Mateus 19 9. A questão pode muito bem emergir em Mateus 5:32. Pois se um homem pode se divorciar corretamente de sua esposa infiel e se esse divórcio dissolve o vínculo matrimonial a questão do novo casamento é inevitavelmente colocada. Novamente, embora não haja alusão ao adultério como exceção em Marcos 10:11 e Lucas 16:18, a lei do Antigo Testamento sobre o adultério e o caráter peculiar do pecado de adultério podem nos obrigar a perguntar se é ou não. Afinal, o adultério não poderia ser uma exceção fictícia notável pelo princípio afirmado nessas duas passagens. Além disso, I Coríntios 7:15 certamente nos enfrentaria com a questão do efeito que a deserção de um parceiro incrédulo teria sobre o estado civil do crente abandonado.

No entanto, Mateus 19:9 é notável, pois a questão da legitimidade ou ilegitimidade do novo casamento após o divórcio por adultério é impelida sobre nós de forma direta e inevitável.

No estágio atual da discussão vamos supor que o texto correto de Mateus 19:9 é lido da seguinte forma: legw de; umin oti o’ anapolush/ thn gunai kai; autou mh; epi; porneia/ kai; gamhsh/ allhn, moicatai. A questão da variação textual será discutida mais adiante. Sobre a leitura do texto acima, é bom passar por ele e notar algumas de suas características únicas:

     I.        Este texto não retrata o caráter do pecado do homem, se ele repudia sua esposa (por qualquer outra causa que não seja adultério) sem se casar novamente. Como já foi dito, Mateus 5:32 trata essa questão de maneira muito direta e decisiva com e vê o pecado do homem do ponto de vista de sua responsabilidade no envolvimento, e do consequente envolvimento com a mulher divorciada. Em Mateus 19:9, no entanto, o foco é o pecado do homem que contrai outro casamento após o divórcio ilícito, sendo sujeito ao julgamento nítido de nosso Senhor.

   II.        O homem que repudia sua esposa (exceto por fornicação) e se casa com outro é claramente condenado como um adúltero. Esta é uma inferência corretamente tirada de Mateus 5:32, mas que aqui está explícita.

 III.        Os direitos de uma mulher em se divorciar seu marido por adultério e o pecado da mulher que se casa novamente após o divórcio por qualquer outra razão não são retratados nesta passagem. Só em Marcos 10:12 há alguma alusão expressa à ação do divórcio por parte da mulher e, como veremos mais adiante, não se faz uma referência intrínseco ao direito do divórcio, mas apenas ao caráter adúltero do novo casamento.

No entanto, verdadeiro X da questão em Mateus 19:9 é a força da cláusula de exceção, "exceto por fornicação" (mhepiporneia). Em termos reais do texto, a questão é: Esta cláusula excepcional se aplica às palavras gamhshallhn e, portanto, a moicatai, bem como ao verbo apolush? Sem dúvida, todavia a cláusula de exceção oferece uma exceção ao erro de se divorciar. No tipo de erro em que ela inocenta o marido não é intimado (do mesmo modo que em Mateus 5:32), mas, assim como na última passagem, fala da liberdade concedida ao marido inocente. Assim como Mateus 5:32, não diz que o homem é obrigado a se divorciar de sua esposa em caso de adultério por parte dela. Simplesmente concede esse direito ou liberdade. A questão então é: Esta exceção, por direito ou liberdade, se estende ao novo casamento do marido divorciado, bem como de se divorciar? Obviamente, se o direito se estende ao novo casamento, o marido (em tal caso) não cometeria o pecado do adultério em seu novo casamento.

Sobre esta questão, a igreja na prática, está fortemente dividida. Por um lado, há aqueles que afirmam que Mateus 19:9 (como também Mateus 5:32) dá ao marido inocente o direito de afastar a mulher que cometeu adultério, mas isso não dá qualquer licença para a dissolução do vínculo matrimonial e do novo casamento do cônjuge inocente. Em outras palavras, o adultério dá o direito de separação do leito e da mesa (a thoro et mensa), mas não rompe o vínculo do casamento nem dá o direito de dissolver esse vínculo. Talvez a mais notável defensora desta posição é a igreja católica romana. No entanto, esta posição não deve ser considerada como unicamente romana. O notável pai latino, Agostinho, pode ser colocado como apoiador desta interpretação. O direito canônico da igreja da Inglaterra, embora permita a separação por adultério, não permite o novo casamento das partes que estão separadas, se ambos estiverem vivos.

Se o texto de Mateus 19:9 (citado acima) for adotado como o texto genuíno e autêntico, então é consideravelmente difícil em manter essa posição. O motivo é visível. É difícil restringir a cláusula excepcional para o afastamento (apolush) e não estendê-la também ao recasamento (gamhsh / allhn). No entanto, esta é a construção que deve ser mantida se for interpretado como ilegítimo o recasamento pós-divórcio por adultério em Mateus 19:9. A igreja romana insiste que a cláusula excepcional modifica o primeiro verbo na declaração em questão, mas diz que isso não se aplica ao segundo. Esta exegese é expressa muito claramente por Aug. Lehmkuhl, como segue:

“A exclusão completa do divórcio absoluto (divortium perfectum) no casamento cristão é expressa nas palavras citadas acima (Marcos x; Lucas xvi; I Coríntios vii). As palavras do Evangelho de São Mateus (xix, 9), ‘exceto por fornicação’, todavia dão lugar ao questão de  não se permitir o afastamento da esposa e a dissolução do vínculo matrimonial por causa do adultério. A Igreja Católica e a teologia católica sempre sustentaram que de acordo com tal explicação Mateus seria forçado a contradizer São Marcos, Lucas e Paulo, e os convertidos instruídos por estes últimos teriam sido enganados em relação à verdadeira doutrina De Cristo. Como isso é inconsistente com a infalibilidade do ensinamento apostólico e a inerrância da Sagrada Escritura, a cláusula de Mateus deve ser explicada como a mera demissão da esposa infiel sem a dissolução do vínculo matrimonial. Tal demissão não é excluída pelos textos paralelos em Marcos e Lucas, enquanto Paulo (I Coríntios vii, 11) indica claramente a possibilidade de tal demissão: ‘e se ela partir, que permaneça solteira, ou se reconcilie com marido dela'. Gramaticamente, a cláusula de São Mateus pode modificar um membro da sentença (o que se refere ao afastamento da esposa) sem ser aplicada ao seguinte membro (o recasamento do outro), embora devamos admitir que a construção seja um pouco estranha. Se isso significa: ‘Qualquer que repudiar sua mulher, exceto por fornicação, e se casar com outra, comete adultério’, então, em caso de infidelidade conjugal, a mulher pode ser posta de lado; mas, neste caso, não pode ser concluído a partir destas palavras que o adultério não é cometido por um novo casamento. As seguintes palavras: ‘E quem casar com a repudiada’ - portanto para a mulher que é repudiada por adultério – ‘comete adultério’, é dito o contrário, pois se supõem a permanência do primeiro casamento.”

Mesmo para apologista da interpretação romana, esta construção de Mateus 19:9 é considerada "um pouco estranha". Veremos que isso está mais para um eufemismo.

De fato, deve admitir-se que a cláusula excepcional é por vezes utilizada no grego para indicar “uma exceção de algo mais geral do que o que foi efetivamente foi mencionado”. Temos exemplos desse uso do eij mhv em Mateus 12:4; em Romanos 14:14 e provavelmente em Gálatas 1:19. Nesse caso, a exceção aqui expressa não seria uma exceção ao princípio de que quem rejeita sua esposa e se casa com outra, comete adultério, mas simplesmente uma exceção ao princípio de que um homem não pode se afastar de sua esposa. Consequentemente, a verdadeira intenção de toda a sentença seria: "Mas eu vos digo que qualquer que rejeitar a sua mulher e casar com outra, comete adultério - um homem só pode se afastar sua esposa por causa de fornicação". Essa interpretação faz sentido por si só e resolveria muitas dificuldades na harmonização dos relatos apresentados nos três evangelhos sinópticos. Contudo, a questão permanece: Esta construção é defensável? Há motivos preponderantes para rejeitá-la.

    I.        Se a cláusula excepcional é como está indicado acima; não sendo uma exceção ao que é expressamente declarado, mas uma exceção a outra consideração estreitamente relacionada e mais geral; isto é uma forma de expressão muito incomum, se não incomparável. Em outros casos em que temos esse tipo de exceção, a construção é bem diferente daquela do nosso texto. Nesses outros casos, a afirmação daquilo a que se acrescenta uma exceção mais geral é dada em primeiro lugar na sua integridade e depois segue a exceção em sua completude. Mas este não é o caso - a exceção é inserida antes que a declaração seja concluída. Portanto, a analogia não favorece essa representação.

   II.        Embora seja gramaticalmente verdadeiro que uma cláusula excepcional possa modificar um membro de uma frase sem modificar o outro, deve ser notado, neste caso particular, que o único membro que a cláusula excepcional que é supostamente modificado na construção romana não está e não pode estar sozinho na sintaxe da sentença em questão. Mesmo se a cláusula kai; gamhsh/ não fizer qualquer modificação por exceção não chegamos a qualquer solução quanto à estrutura gramatical. A fim de completar o sentido do que é introduzido pela cláusula (o’ an apoluvsh/ thn gunai kai, autouv) devemos passar para o verbo principal, moicatai. Mas se fizermos isso sem referência à cláusula de novo casamento (kai; gamhsh/ allhn) obtemos um absurdo e uma afirmação falsa, "aquele que rejeita a sua esposa, exceto por fornicação, comete adultério". Em outras palavras, deve ser observado que nesta frase como tal, nenhum pensamento é completo sem o verbo principal, moicav tai. O pensamento dominante nesta passagem é ideia de cometer adultério no novo casamento; suprimir isso é totalmente indefensável. Portanto, a cláusula muito excepcional deve ter relação direta com a ação denotada pelo verbo que a governa. Mas, para ter influência direta sobre o verbo principal (moicatai), ela também deve ter relação direta com o que deve ocorrer antes que a ação denotada pelo verbo principal possa produza seus efeitos, o casamento com outro. Esta orientação direta que a cláusula excepcional deve ter sobre o recasamento e sobre o adultério é simplesmente outra maneira de dizer que, no que se refere à sintaxe da sentença, a cláusula excepcional deve ser aplicada ao adultério no caso do novo casamento, bem como ao erro de repudiar. Uma comparação com Mateus 5:32 ajudará a esclarecer este ponto. Lá é dito, "Todo aquele que rejeitar sua esposa, exceto por fornicação, faz com que ela cometa adultério". Neste caso, a cláusula excepcional tem pleno significado e relevância independente do novo casamento por parte do marido divorciado. Isto é assim porque o pecado contemplado por parte do marido divorciado não é cometer adultério por sua parte, mas a tornar sua esposa adúltera. Mas em Mateus 19:9 o caso é completamente diferente. O fardo que se pensa no 19:9 é o cometimento de adultério por parte do próprio marido divorciado. Mas este pecado de sua parte pressupõe seu novo casamento. Consequentemente, na sintaxe verdadeira da sentença, o significado e a relevância da cláusula excepcional não podem ser mantidos para além de sua aplicação ao novo casamento, bem como ao repúdio.

 III.        O que é contemplado nesta sentença não é meramente o repúdio, como em Mateus 5:31-32, mas o repúdio e o novo casamento por parte do marido. Por isso, ela deve ser cuidadosamente distinguida do logion de Matt. 5:32 e deve ser colocado na mesma categoria que Marcos 10:11 e Lucas 16:18. Portanto, o assunto tratado é o divórcio e o novo casamento em coordenação, e esta coordenação não deve ser perturbada de forma alguma. É isto que conduz e prepara o terreno para o verbo principal, o adultério por parte do marido divorciado. Portanto, seria injustificável relacionar a cláusula de exceção com qualquer outra coisa que não a coordenação. Além disso, a cláusula excepcional está em posição natural em relação à coordenação e com referência ao pecado resultante ao qual ela fornece a exceção. Onde mais a cláusula de exceção poderia ser colocada, se ela se aplica a todos os três elementos da situação expressa? E ela está na posição natural como aplicada à coordenação, a construção natural é a que contempla uma exceção à afirmação da sentença em sua totalidade.

 IV.        O divórcio permitido ou tolerado sob a organização mosaica tinha poder para dissolver o vínculo matrimonial. Esta permissão mosaica sobre divórcio é referida no contexto desta passagem, bem como em Mateus 5:31 e na passagem paralela em Marcos 10:2-12. Em cada um desses casos, o mesmo verbo (apoluw) é usado com referência a esta provisão Mosaica. Ora, já que este era o efeito do divórcio aludido nesta passagem e já que não há a menor indicação de que o vigente divorcio por adultério, legitimado em Mateus 19:9 e 5:32, tinha um efeito totalmente diferente, estamos certamente justificados a concluir que o repúdio sancionado por Nosso Senhor foi destinado a ter o mesmo efeito na questão de dissolver o laço de casamento. Deve-se notar que a lei aqui enunciada por Jesus não sugere qualquer alteração na natureza e efeito do divórcio. A mudança sugerida por Jesus era antes a abolição de qualquer outra razão permitida nas disposições mosaicas e a especificação distinta de que o adultério era agora o único fundamento sobre o qual um homem poderia legitimamente se afastar de sua esposa. O que é ab-rogado então não é o divórcio em sua dissolução concomitante do vínculo matrimonial, mas todo o terreno para o divórcio que não seja adultério. Se o divórcio envolve a dissolução do vínculo matrimonial, então não devemos esperar que o novo casamento seja considerado adultério.

   V.        É bem razoável supor que se o homem pode, de forma legítima, se afastar sua esposa, pois no adultério o laço do casamento pode ser dissolvido. Em qualquer outra suposição, a mulher que cometeu adultério e que foi repudiada ainda é, na realidade, esposa do homem e uma só carne com ele. Se assim for parece muito anômalo que o homem deve ter o direito de afastar alguém que é permanentemente, enquanto a vida durar, sua esposa e é uma só carne com ele. Tomar medidas que aliviem as obrigações do matrimônio enquanto o laço conjugal é inviolável dificilmente parece ser compatível com a ética conjugal como ensinado na própria Escritura. É verdade que Paulo distintamente contempla a possibilidade de separação sem dissolução e propõe o que a lei em tal contingência (I Cor. 7:10-11). Mas prover e sancionar a separação permanente enquanto o laço do casamento permanece inviolável é algo que é estranho a todo o teor do ensinamento bíblico em relação às obrigações que existem e que são inseparáveis ​​do vínculo conjugal.

 VI.        A posição de que o adultério garante separação, mas não a dissolução do vínculo matrimonial, parece entrar em conflito com outro princípio da Escritura que se aplica ao caso agravado pela fornicação ou pela prostituição. Se o adultério não dá fundamento à dissolução do vínculo matrimonial, então um homem que não pode obter a dissolução mesmo quando sua esposa o abandonou pela prostituição. Isso parece bastante contrário ao princípio de pureza expresso pelo apóstolo (I Cor. 6:15-17). Parece, portanto, que a dissolução do vínculo matrimonial deve ser o meio apropriado e, em alguns casos, o meio obrigatório de garantir a libertação de um vínculo que se liga tão singularmente a alguém que está contaminado desse jeito.

Nestes vários motivos, podemos concluir que não é possível interpretar a cláusula excepcional de Mateus 19:9 como sendo aplicada apenas à separação e não ao novo casamento por parte do marido divorciado. As considerações preponderam mais em favor da conclusão de que quando um homem repudia sua esposa por causa da fornicação, este afastamento tem o efeito de dissolver o vínculo do casamento; com o resultado de que ele é livre para voltar a se casar sem, assim, incorrer na culpa do adultério. Em termos simples, isso significa que o divórcio em tal caso dissolve o casamento e que as partes não são mais marido e mulher.

Fonte: The Highway

Extraído de: A Cruz On-line



Sobre o autor: John Murray

John Murray (1898 - 1975), teólogo reformado escocês, foi um dos fundadores do Westminster Theological Seminary. Trabalhou como professor na Universidade de Princeton antes de sair para ajudar a estabelecer o seminário Westminster, onde lecionou de 1930 a 1966. Foi responsável por muitos escritos sobre temas cristãos, incluindo tópicos sobre ética e teologia sistemática.

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Tag: Teologia Pastoral

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Última atualização: 14/08/2020 5:51:00



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