Carta de João Calvino a Francis Daniel [1534]
Por: João Calvino
CARTA 10 - PARA FRANCIS DANIEL
APOSENTADORIA DE CALVINO EM ANGOULEME
DOXOPOLIS [1534]
Sem ter nada em particular para escrever eu posso em qualquer momento bancar o fofoqueiro com você, e assim preencher uma carta. Ainda assim, porque eu deveria lançar sobre você minhas reclamações? A questão principal que, na minha opinião, é interessante o suficiente para ser comunicada a você neste momento é que eu estou bem, e levando em consideração a fraqueza do corpo e a enfermidade da qual você está ciente, também ainda estou fazendo alguns progressos no estudo. Com certeza, também, a bondade do meu patrono pode muito bem acelerar a inatividade do mais indolente indivíduo, pois é tal que compreendo claramente ser dada por causa das cartas. Por isso eu devo ainda mais empenhar-me e sinceramente esforçar-me para que eu não seja totalmente tomado pela pressão de tão generosa bondade, que de algum modo, constrange-me ao esforço. Embora, na verdade, se eu tivesse que tensionar cada nervo ao máximo, jamais conseguiria qualquer retorno adequado, ou até mesmo inadequado, tão grande é a quantidade de obrigações que eu teria que encarar. Este incentivo, portanto, deve manter-me continuamente consciente para cultivar aquelas motivações comuns do estudo, pois por causa dele um grande valor é colocado sobre de mim. Se fosse permitido desfrutar um repouso como este — a pausa, se estou a considerá-lo como meu exílio ou como minha aposentadoria, devo concluir que eu tenho sido favoravelmente bem cuidado. Mas o Senhor, por cuja providência tudo é antevisto, vai cuidar destas coisas. Eu aprendi por experiência própria que nós não podemos ver muito longe a nossa frente. Quando prometi a mim mesmo uma vida tranquila e fácil, o que eu menos esperava estava à mão; e, pelo contrário, quando pareceu-me que minha situação não podia ser tão amena, um ninho calmo foi construído para mim, além das minhas expectativas, e isso é a ação do Senhor, a quem, quando nos comprometemos, Ele mesmo cuida de nós. Mas eu já quase enchi minha página, parte com escrita, parte com a borrões. — Adeus, saúde a quem você desejar.
[Cópia latina — Biblioteca de Berna. Volume 450.]
Tradutor: Rev. Antônio dos Passos Pereira Amaral, ministro presbiteriano, pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Filadélfia em Marabá-PA, cursando Mestrado (MDiv) em Teologia Histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper/SP.
Fonte: REFORMADOS DO SÉCULO XVI
Sobre o autor: João Calvino
João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.
Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.
Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]
Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.
Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".