Carta de João Calvino a Frances Daniel [1529]
Por: João Calvino
CARTA 2 - A FRANCES DANIEL
CALVINO EM PARIS — NICOLAS COP —
OS DOIS AMIGOS VISITAM UM MOSTEIRO.
PARIS, 27 de junho de 1529.
Cansado da jornada, no dia seguinte a nossa viagem para cá mal podíamos colocar o pé para fora casa. Pelos próximos quatro dias, enquanto eu ainda me sentia incapaz de me mover, todo o tempo foi gasto em saudações amigáveis. No Dia do senhor, voltei ao mosteiro com o Cop, que havia consentido em me acompanhar, e que de acordo com o seu conselho, eu devia marcar com as freiras o dia no qual sua irmã deveria fazer os votos. Foi-me dito, em resposta a minha pergunta, que, junto com algumas outras de sua própria ordem, ela tinha obtido da irmandade, em conformidade com os hábitos aprovados (ex. solemni more), o poder de fazer ela mesma seus votos. A filha de um determinado banqueiro de Orleans, que é professor de artes de seu irmão, faz parte do grupo. Enquanto Cop estava envolvido numa conversa com a madre superiora, eu sondei a inclinação de sua irmã, se ela tomaria aquele jugo pacientemente, — ou se não estaria sendo vencida por submissão forçada, ao invés de submeter-se voluntariamente. Eu instei com ela novamente para que livremente confiasse em mim quanto ao que ela poderia ter em mente. Nunca vi ninguém que fosse mais rápida ou mais pronta em responder, e assim não poderia vir tão logo a satisfazer seus desejos. Você chegaria quase a pensar que ela estava brincando com sua boneca tão freqüentemente quanto ouvia falar do voto. Não quis retirá-la do seu propósito, porque eu não tinha vindo com esse objetivo. Mas, em poucas palavras, eu a admoestei a não confiar demais em suas próprias resoluções, que ela não deveria fazer promessas precipitadas por si só, mas que, pelo contrário, ela deveria descansar na força de Deus para toda a ajuda necessária, — em quem vivemos e temos o nosso ser.
Enquanto estávamos envolvidos na conversa, a madre superiora deu-me uma oportunidade de falar com ela, e quando eu propus que ela deveria estabelecer um dia, ela deixou a escolha por minha conta, mas com a condição de que Pylades deveria estar presente, o qual estará em Orleans no prazo de oito dias. Então, visto que o dia não pode ser marcado com mais certeza, nós deixamos isso para Pylades decidir. Portanto, você deve acertar com ele como parecer mais conveniente, visto que eu não posso ser de mais utilidade pra você aqui.
Sobre meus assuntos; — eu ainda não me fixei em um alojamento, embora houvesse muitos para ficar se eu desejasse alugar um; e também oferecidos por amigos, se eu tivesse disposto a aproveitar do uso deles. O pai do nosso amigo Coiffart ofereceu sua casa para mim, com aquela generosidade que você tinha dito que não havia nada que ele desejasse mais do que eu ficasse hospedado com seu filho. Coiffart também, com muitos rogos, e daqueles que não são de forma nenhuma frios ou distantes, insistiu muitas vezes que deveria me ter por colega e companheiro; não há nada que preferisse mais que receber de braços abertos este convite da parte do meu amigo, cujo conhecimento é agradável e proveitoso para mim, você mesmo pode testemunhar, e que eu teria aceitado imediatamente se eu não pretendesse estudar o dinamarquês, cuja escola está situada a uma grande distância da casa do Coiffart. Todos os amigos que estão aqui desejam ser lembrados por você, especialmente Coiffart e Viermey, com quem eu estou prestes a sair para cavalgar. Cumprimente sua mãe; sua esposa e sua irmã Francisca. Adeus. Eu comecei uma carta para o decano, a qual terminarei quando retornar. Se qualquer inconveniente for ocasionado pelo atraso eu o recompensarei.
[Cópia Latim - Biblioteca de Berna.Volume 450.]
Extaído de Letters 1528-1545 - Selected Works of John Calvin (Albany, Ages Software, 1998), vol. 4, pp. 31-32.
Tradução em 19 de Março de 2014.
Tradutor: Rev. Antônio dos Passos Pereira Amaral, ministro presbiteriano, pastor efetivo na Igreja Presbiteriana de Lagoa Santa; professor de teologia e hermenêutica na Escola Bíblica Central do Brasil/Lagoa Santa-MG; Bacharel em Teologia e Missiologia pela Escola Superior de Teologia e Estudos Transculturais/Montes Claros-MG (2003), Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/São Paulo-SP (2013), cursando Mestrado (MDiv) em Teologia Histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper/SP.
Revisado por Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática no SPBC-RO
Fonte: REFORMADOS DO SÉCULO XVI
Sobre o autor: João Calvino
João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.
Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.
Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]
Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.
Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".