Carta de João Calvino a Christopher Libertet [1534]
Por: João Calvino
CARTA 11
PARA CHRISTOPHER LIBERTET[1]
CALVINO EM BASILÉIA - REVISÃO DA BÍBLIA DE ROBERT OLIVETAN - TRATADO SOBRE A IMORTALIDADE DA ALMA.
BASILÉIA, 11 de Setembro, [1534][2]
Quando o nosso amigo Olivetan[3] insinuou, através das cartas que ele escreveu sobre o momento da sua partida, que ele tinha colocado de lado sua publicação intentada do Novo Testamento para um outro momento, pareceu-me que eu poderia fazer a revisão que havia prometido no meu período de lazer, e reservá-lo para um outro momento. Nesse ínterim, outros estudos envolveram minha atenção, e eu não pensei mais no assunto, ou melhor, me afundei na costumeira enfermidade. Na verdade, eu raramente tenho posto minha mão para trabalhar nele, e além disso, o volume que enviei será necessário para o conjunto, e embora tenha sido trazido há três meses, ainda não foi feito. Isso não aconteceu por qualquer indiferença de minha parte, mas em parte pela lentidão do encadernador, a quem, no entanto, nós não deixamos de chamar diariamente, parcialmente também porque quando ele foi inicialmente trazido para mim nós pedimos um suprimento de papel para a extensão de seis folhas, o que não podia ser feito imediatamente. De agora em diante, no entanto, separarei uma hora todos os dias para me aplicar a este trabalho. Se eu tivesse que fazer quaisquer observações, não iria confiá-las a ninguém mais senão a você, a menos que Olivetan em seu retorno se antecipasse a você. Além disso, palavras tem sido trazidas a mim por alguém, não sei quem, a pedido seu, que você não aprova inteiramente algumas coisas no meu tratado sobre a imortalidade da alma.[4] Assim, longe de ser ofendido por causa de sua opinião, gentilmente me deleito com esta simplicidade direta. Nem minha perversidade chega a tal ponto que me permitisse uma liberdade de opinião tal, que eu desejasse subtraí-la de outros. Que eu, no entanto, não te oprima ou irrite desnecessariamente, lutando a mesma batalha repetidas vezes, eu desejo que você entenda que o livro foi reformulado por mim. Algumas coisas foram adicionados, outros deixados de fora, mas tudo completamente de uma forma e método diferentes. Ainda que algumas poucas coisas foram omitidos, outras eu inseri, e algumas coisas eu alterei. Quanto àquele ensaio que eu tinha dado para Olivetan ler, continha meus primeiros pensamentos, foram preparados em forma de memorandos ou comentários ao invés de conclusões resultantes de qualquer método definido e certo, embora houvesse alguma aparência de ordem.
Aquele novo livro (pois assim deve ser chamado) que eu teria lhe enviado, tinha sido lido por mim de novo. Mas desde que foi escrito por Gaspar, eu nem olhei para ele. Até logo; que o Senhor te tenha em seus cuidados e possa enriquecê-lo sempre com seus próprios dons. – Seu,
Martianus Lucanius.[5]
De uma forma ou de outra aconteceu que na pressa de escrever eu omiti, o que modo algum, eu pretendia. Era de exortar você e os outros irmãos em poucas palavras, mas de todo o coração, ao cultivo da paz, para preservação daquilo que vocês deveriam todos se esforçarem o mais intensamente possível, visto que Satanás procura atentamente a vossa derrubada. Você podem ter dificuldades de acreditar o quanto eu fiquei chocado ao ouvir que o novo alvoroço sobre os leprosos, foi iniciado por ele de quem eu jamais suspeitaria tal coisa. Mas finalmente ele vomitou o veneno que foi engolindo na longa dissimulação, e tendo armado o bote, fugiu como uma víbora. Não seja faltoso, de sua parte, peço-te, no que depender de você, que, na verdade, eu estava confiante de que seria o caso de seu próprio acordo, mas eu estava disposto ao mesmo tempo para interpor minha oração pela paz.
[Autógrafo original Latim - Biblioteca da Companhia de Neuchatel].
NOTAS:
[1] Christopher Libertet ou Fabri, de Viena em Dauphiny, um ministro digno da Igreja de Neuchatel. Por um breve período ele começou relações de amizade com Calvino, foi em 1536 pastor da congregação em Thenon, participou no mesmo ano na disputa em Lausanne e foi chamado em 1546 pela Igreja de Neuchatel, onde serviu até a hora de sua morte, em 1563, com a mesma sabedoria e fidelidade.
[2] Sem ano. Esta carta, escrita antes da publicação da Bíblia de Robert Olivetan, refere-se, evidentemente, ao ano de 1534. Devido à necessidade de deixar a França, a fim de escapar da perseguição, Calvino tinha se exilado em Basiléia, onde, no ano seguinte, compôs seu livro “De l’Institution Chretienne.”
[3] Peter Robert Olivetan, relacionado a Calvino e tradutor da Bíblia para a língua francesa. Banido de Genebra, em 1533, ele havia se retirado para Neuchatel, onde publicou consecutivamente (1534-1535) sua tradução do Novo e do Velho Testamento. Este trabalho, realizado a pedido dos valdenses do Piemonte, tinha sido revisado por Calvino.
[4] Este é o tratado que tem direito “Psychopannychia, qua refellitur eorum error qui animas post mortem usque ad ultimum judicium dormire putant.” – Paris, 1534, 8vo. Este tratado, traduzido para o francês pelo próprio Calvino, foi inserido, com um prefácio do autor, “a un sien amy,” no “Recueil des Opuscules,” página 1.
[5] Um pseudônimo que Calvino, por vezes, fazia uso em sua correspondência Latina.
Tradutor: Rev. Antônio dos Passos Pereira Amaral, ministro presbiteriano, pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Filadélfia em Marabá-PA, cursando Mestrado (MDiv) em Teologia Histórica pelo CPAJ – Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper/SP.
Fonte: REFORMADOS DO SÉCULO XVI
Sobre o autor: João Calvino
João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.
Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.
Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]
Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.
Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".