Calvino e Serveto
Por: Augustus Nicodemus Lopes
Gerações sempre estão passando a limpo pontos obscuros da história de seus antepassados. Assistimos, no momento, a tentativa de vários grupos alemães de trazer a lume aspectos do envolvimento do povo alemão no Holocausto que serviriam para amenizar a sombra que paira sobre a nação pelo assassínio de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Recentemente, o Dr. Frans Leonard Schalkwijk em sua obra Igreja e Estado no Brasil Holandês lança luz sobre a figura do “traidor” Calabar, demonstrando que a “traição” foi, na verdade, sua conversão ao Evangelho pregado pelos holandeses reformados. Quem sabe o presente artigo possa ajudar a passar a limpo alguns aspectos do tristemente famoso episódio envolvendo João Calvino e a execução na fogueira do médico espanhol Miguel Serveto, condenado por heresia contra a Trindade, em 1553, em Genebra.
Preciso dizer desde o início que minha intenção não é justificar a participação de Calvino no incidente. Não posso concordar com a pena de morte como castigo para a heresia, muito menos se o método de execução é queimar vivo o faltoso. Até mesmo os maiores heróis do passado tomaram decisões e fizeram declarações que nos causam, séculos depois, estranheza e discordância. Calvino não é nenhuma exceção. Meu alvo neste artigo não é defendê-lo como se ele fosse sem defeitos. É claro que ele os tinha. É claro que ele errou. Mas penso que, particularmente no caso envolvendo a execução de Serveto por heresia em Genebra, durante o tempo em que Calvino ali ministrava, nem sempre vozes se têm levantado para apresentar outra versão dos fatos, versão esta enraizada em documentos confiáveis. Episódios do passado devem ser entendidos à luz dos conceitos e valores da época em que ocorreram. Meu alvo é expor alguns deles que estavam vigentes na época de Calvino, bem como trazer dados freqüentemente ignorados sobre o episódio. Não podemos justificar Calvino por pedir a pena de morte para Serveto, mas podemos entender os motivos que o levaram a isto.
Testemunhas que viveram em Genebra, logo após a cidade haver abraçado a Reforma protestante, a viram como “o espelho e modelo de verdadeira devoção, um abrigo para os refugiados perseguidos por sua fé, um lugar seguro para treinar e enviar ao estrangeiro soldados do Evangelho e ministros da Palavra”. Logo que Genebra abraçou a Reforma oficialmente e cortou suas lealdades para com o bispo e Duque de Savóia, a cidade foi inundada por refugiados de toda a Europa. Da noite para o dia Genebra se tornou, depois de Wittenberg, Zurique, e Estrasburgo, um monumento da fé protestante.
Apesar destas observações feitas por pessoas que viveram em Genebra na época destes acontecimentos, as impressões que recebemos de nossos professores de escola secundária provavelmente têm pouco, ou nada, em comum com o depoimento destas testemunhas oculares. Segundo M. Horton “imagens abundam de um tirano vestido numa toga preta, organizando o equivalente no século XVI de uma polícia secreta moderna para assegurar que ninguém, a qualquer hora ou qualquer lugar, estivesse se divertindo.” É de admirar que, apesar dos testemunhos em contrário, prevaleceu na opinião pública a idéia de que Genebra era uma teocracia e Calvino era seu Papa!
Em 25 de maio de 1536 os cidadãos de Genebra votaram por aderir à Reforma protestante. Mas isso é só o começo. Sem liderança qualificada, Genebra estava à beira do colapso civil e religioso. O que a república nova precisava era de um jovem visionário.
Calvino chegou em Genebra fugindo das autoridades de Paris. Ele havia inicialmente se encaminhado para a cidade reformada de Estrasburgo, onde Martin Bucer estava pregando. Porém, o Rei francês e o Imperador estavam envolvidos em uma guerra que bloqueou a estrada para a cidade. Frustrado, mas destemido, Calvino tomou um desvio para Genebra durante a noite. De lá não passaria. Ficou, a pedido insistente de Farel, líder protestante da cidade, e depois de algum tempo foi designado o pastor da Igreja de São Pedro, a catedral de Genebra. Tensões entre Calvino, Farel e o Conselho municipal com respeito à celebração da Ceia do Senhor, as atribuições da Igreja e do Estado e o exercício da disciplina, acabaram por levar o Conselho a expulsar Calvino de lá. E ele seguiu, exilado, para Estrasburgo.
Ali (1538-41), Calvino se sentia como se estivesse no céu. Martin Bucer se tornou o seu mentor dele Calvino assumiu o pastorado da Igreja francesa reformada da cidade. Durante este tempo, Calvino publicou alguns dos seus trabalhos mais notáveis; ali casou com Idelette Bure, a viúva de um amigo anabatista. Calvino estava muito feliz lá, mas uma vez mais Genebra estava chamando.
O Conselho municipal escreveu a Calvino pedindo ajuda contra o ensino do Cardeal Sadoleto, que procurava retomar Genebra para a Igreja Católica. Pediu desculpas, e com mais um apelo de Farel, convenceram Calvino a voltar. Dr. McGrath, historiador da Universidade de Oxford, demonstra como mito de “o grande ditador de Genebra” é enraizado em conceitos populares difundidos especialmente pelas obras de Bolsec e Huxley, que fizeram afirmações sem ter qualquer fato histórico que os apoiasse, mas que não obstante acabaram por moldar a visão de Calvino que hoje prevalece em muitos meios evangélicos. Calvino não tinha qualquer acesso à máquina decisória do Conselho. Ele mesmo não podia votar e nem concorrer a qualquer cargo político eletivo. E mesmo quanto aos negócios da Igreja, Calvino quase não tinha qualquer poder decisório.
A 25 de outubro de 1553 o Conselho municipal emitiu o decreto que condenava Miguel Serveto à ser queimado na estaca por heresia. De fato, foi Calvino quem o denunciou e quem pediu a pena de morte para ele. Vejamos agora o contexto em que isto aconteceu.
1.A pena de morte por heresia era prática geral da Idade Média. 2.Serveto chegou a Genebra fugido de Viena e da França, onde havia sido condenado à morte pela Igreja Católica, sob a acusação de heresia contra a Trindade. 3.Serveto veio à Genebra apesar dos avisos de Calvino de que isto poderia lhe custar a vida. 4.Chegando em Genebra, se fez conhecido a Calvino em público. Foi preso e, embora Calvino fosse um teólogo e advogado treinado (havia mesmo sido empregado pelo Conselho municipal para traçar a legislação relativa à previdência social e ao planejamento dos serviços de saúde pública), mesmo assim, não foi o promotor do processo eclesiástico contra Serveto. Lembremos que ele não tinha nem os mesmos direitos de um cidadão comum! 5.Calvino aceitava a pena de morte, não somente para os que matavam o corpo de seus semelhantes, mas também para os que lhes matavam a alma através do veneno mortal do erro religioso. 6.Por outro lado, não foram as convicções teológicas de Calvino que o levaram a isto. Não se pode culpar as suas convicções, particularmente sua firme crença na soberania de Deus, pela execução de Serveto. 7.Calvino havia se correspondido com Serveto e há alguma evidência nestas cartas de que ele tinha tentado até mesmo se encontrar clandestinamente com o anti-trinitário para tentar convencê-lo do seu erro. 8.Há outro fato a ponderar. Quando foi dada a Serveto a escolha da cidade onde seria julgado, ele escolheu Genebra. A outra opção era Viena, de onde viera fugido. Por alguma razão, ele deve ter pensado que suas chances de sobrevivência eram melhores em Genebra. Porém, o Conselho municipal da cidade, conduzida pela facção dos Libertinos, totalmente contrários a Calvino, estava determinada a mostrar que Genebra era uma cidade reformada e comprometida com os credos. E assim, Serveto foi condenada a ser queimado vivo. 9.Calvino suplicou ao Conselho que executasse Serveto de uma maneira mais humanitária do que o ritual tradicional de queima de hereges. Mas, claro, o Conselho municipal recusou o argumento de Calvino. Farel visitou Calvino durante a execução. Calvino estava tão transtornado, como foi mais tarde reportado, que Farel partiu sem dizer até mesmo adeus. 10.A execução de Serveto foi aprovada por todas as demais cidades-estados reformadas, e por todos os reformadores. Lutero e Zwinglio já havia morrido, mas certamente haveriam concordado. Os demais, Bullinger, Beza, Bucer, etc. todos deram apoio irrestrito à Calvino.
Estes são alguns fatos que devemos lembrar, antes de chamarmos Calvino de “assassino”. Durante este mesmo período, a propósito, trinta e nove hereges foram queimados em Paris, vítimas da Inquisição católica, que estava sendo aplicada com rigor na Espanha e Itália, e outras partes de Europa. Apesar de que muitos que não eram ortodoxos buscaram (e encontraram) refúgio em Genebra, fugindo das autoridades católicas, Serveto foi o único herege a ser queimado lá durante a carreira distinta de Calvino.
Até mesmo os Judeus foram convidados pelas cidades-estados reformadas para se abrigarem nelas, fugindo da Inquisição. O puritano Oliver Cromwell, líder do Parlamento inglês por uma época, mais tarde tornou a Inglaterra um abrigo seguro para os dissidentes religiosos, e especialmente para os judeus. O mesmo ocorreu nos Países Baixos (atual Holanda). E mesmo hoje, Genebra e Estrasburgo, outrora reformadas, figuram no topo da lista como cidades que se destacam em termos de direitos humanos e relações internacionais.
O que muitos ignoram é que Calvino era um pastor atencioso, que visitou pacientes terminais de doenças contagiosas no hospital que ele mesmo havia estabelecido, embora fosse advertido dos perigos de contato. Foi ele quem instou o Conselho a afiançar empréstimos a baixos juros para os pobres. Foi ele quem defendeu a educação universal, livre para todos os habitantes da cidade, como Lutero e os outros reformadores tinha feito. Sua preocupação diária em 1541 era como dar à Genebra uma Universidade.
Eis aqui o famoso “tirano de Genebra”! Penning escreve que, pelo fim da vida de Calvino, ao ser visto nas ruas da cidade, os moradores diziam, “Lá vai nosso Mestre Calvino”. Em 10 de março de 1564 o Conselho decretou um dia de oração para a saúde de Calvino e o reformador recuperou-se durante um tempo. Na Páscoa deste ano Calvino foi levado à igreja carregado em sua cadeira para participar da Ceia do Senhor, devido ao seu extremo estado de fraqueza. Quando a enorme congregação o viu chegar assim, começou a se lamentar e a chorar. No sábado, 27 de maio, Calvino morria, aos cinquenta e cinco anos de idade. Quando à noite as notícias da sua morte se espalharam pela cidade, “Genebra lamentou-se como uma nação lamenta quando perde seu benfeitor,” escreve Penning.
A execução de Serveto permanece como uma mancha na história da carreira distinta de Calvino em Genebra. Usá-la, porém, para denegrir sua imagem, para atacar a sua teologia, e para envergonhar os calvinistas, é expediente preconceituoso de quem não deseja ver todos os fatos.
Fonte: Seminário JMC
Sobre o autor: Augustus Nicodemus Lopes
Augustus Nicodemus Lopes é bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte, em Recife, mestre em Novo Testamento pela Universidade Cristã de Potchefstroom, na África do Sul, e doutor em Hermenêutica e Estudos Bíblicos pelo Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia (EUA), com estudos adicionais na Universidade Reformada de Kampen, na Holanda.