Conselhos de João Calvino sobre empréstimo, usura e Igreja e Estado

Por: João Calvino

Eu seria mais diligente em responder, querido irmão, se não fosse impedido pela dificuldade que parece estar relacionada à pergunta que fez em sua carta. Você pergunta se é permitido aos ministros cobrar e obter lucro com o dinheiro deles. Se eu disser “não” categoricamente, minha resposta poderá ser julgada mais severa do que a correta e, possivelmente, será distorcida. Portanto, não me atreveria a afirmar que não é permitido. Sei como é provável que isso acarrete falsas acusações e escândalos, mais intrigante, e como a maioria das pessoas estendem os limites dos bens que podem adquirir, mesmo sob condições de restrição, prefiro parar de me comprometer do que dar uma resposta completa, e oferecer a minha opinião de que este assunto fosse liberado de restrições de uma vez por todas.

Seria sensato, é claro, abster-se de transações desse tipo e da ganância por lucros. Jeremias tem o propósito de testemunhar sobre si mesmo: “Nunca lhes emprestei com usura, nem eles me emprestaram a mim com usura; todavia, cada um deles me amaldiçoa” [Jr 15.10]. Quando um ministro da Palavra pode impedir-se de obter lucros desse tipo, ele está tomando a decisão certa para si. Não obstante, é mais tolerável que receba esse lucro do que entre nos negócios ou empreenda alguma atividade que o afaste dos deveres de seu ofício e, portanto, não vejo que isso mereça condenação como algo geral. Eu gostaria de ver a restrição usada. Obviamente, ele não deve estipular uma taxa de retorno definitiva ou que uma quantia específica de dinheiro lhe seja paga. Ele pode, no entanto, investir seu dinheiro com um homem honesto, cuja boa fé e honestidade ele confia. Que se contente com um retorno justo e honesto de seu dinheiro, de acordo com o modo das bênçãos de Deus sobre ele como usuário de riqueza.

Sobre a questão de prestar juramento no consistório, você deve agir com prudência para combater as desvantagens e murmúrios dos iníquos. Será melhor, portanto, se aqueles que são chamados prestarem juramento quando for necessário e permanecerem como se estivessem no tribunal de Deus, uma vez que o próprio Deus está presidindo uma assembleia. Evite cuidadosamente qualquer tipo de ação que tenha aparência de uma justificativa, ou mesmo algo parecido.

Por fim, não vejo dificuldade em admitir no consistório àqueles que são responsáveis pela jurisdição civil normal, desde que não estejam presentes devido ao prestígio e respeito à sua jurisdição. Uma distinção deve sempre ser observada entre essas duas áreas claramente distintas de responsabilidade: a civil e a eclesiástica. Além disso, não há razão para excluí-los de nossas investigações e decisões sobre assuntos espirituais. Em resumo, quando homens adequados forem escolhidos para esse cargo, cuidem para que não combinem o poder da espada com algo que, por sua própria natureza, deva permanecer distinto desse poder.

Achei que deveria responder às suas perguntas dessa maneira, mas não quero que as respostas pareçam ter vindo apenas de minhas opiniões. Eu consultei meus irmãos expressamente, e eles aprovaram.

Saudações,
10 Janeiro de 1560.

Mary Beaty and Benjamin W. Farley, Calvin’s Ecclesiastical Advice (Louisville, Westminster/John Knox Press, 1991), pp. 160-161.
Tradução de Ewerton B. Tokashiki

Fonte: REFORMADOS DO SÉCULO XVI



Sobre o autor: João Calvino

João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.

Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.

Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]

Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.

Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".

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Última atualização: 13/08/2020 21:22:00



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