Carta de João Calvino a Francis Daniel [1533]

Por: João Calvino

CARTA 9 - A FRANCIS DANIEL
REFORMA EM PARIS – A FÚRIA DE SORBONNE - COMÉDIA SATÍRICA DIRIGIDA CONTRA A RAINHA DE NAVARRO - A INTERVENÇÃO DE FRANCIS I. DELIBERAÇÃO SOBRE AS QUATRO FACULDADES - REVOGAÇÃO DA CENSURA PRONUNCIADA CONTRA O LIVRO INTITULADO "O ESPELHO DA ALMA PECADORA."
PARIS, [Outubro] 1533.


Embora eu tenha do meu lado uma gama de materiais que fornecem provas mais que satisfatórias do que está escrito, conterei minha caneta, para que você possa ter os principais fatos ao invés de uma longa narrativa; que se fosse para eu escrever tudo, daria um volume considerável. Em primeiro de outubro, período do ano em que os meninos que passam da classe de gramática para dialética, como de costume, por questão de prática, fazem uma peça teatral, eles representaram uma no Ginásio de Navarro, o que foi extraordinariamente pungente com aspersão de fel e vinagre. Os personagens levados ao palco são – uma rainha, que, femininamente vestida, apareceu com um tear, e totalmente ocupada com a roca e a agulha; em seguida, a furiosa Megera apareceu, trazendo tochas acesas perto de si, e pronta para jogar fora a roca e a agulha. Por um momento ela ofereceu oposição e dificuldade, mas quando ela se rendeu, recebeu em suas mãos o evangelho, e imediatamente se esqueceu de todos os hábitos que tinha anteriormente cultivado, e quase até de si mesma. Por último, ela se torna tirânica, e persegue os inocentes e desafortunados usando todo tipo de crueldade. Muitos outros recursos foram introduzidos no mesmo estilo, a maioria indignamente, de fato, contra essa excelente mulher, a quem, indireta ou obscuramente, eles insultuosamente afrontaram com suas injúrias. Por alguns dias o caso foi suprimido. Depois, no entanto, como a verdade é filha do tempo, e todo o problema tendo sido relatado à rainha, pareceu a ela que isso poderia deixar um péssimo exemplo e incentivo à lascívia deles, que sempre se pasmam atrás de coisas novas, se fosse permitido que esta impertinência passasse impune.

O chefe da polícia com cem oficiais dirigiu-se ao ginásio, e por sua ordem, cercaram o edifício para que ninguém pudesse escapar. Ele então entrou com alguns de seus homens, mas não teve sucesso em encontrar o autor da peça teatral. Dizem que ele jamais esperava um procedimento assim, e por isso não fez qualquer provisão para o caso de acontecer; mas estando por acaso no quarto de um amigo, ouviu o barulho antes que pudessem vê-lo e então se escondeu até conseguir uma chance de fuga do flagrante. O chefe do comando da polícia capturou os artistas juvenis; o diretor do Ginásio, entretanto, resistiu a este procedimento; no meio da confusão, pedras foram jogadas por alguns dos rapazes. O chefe da polícia, no entanto, manteve seus prisioneiros em custódia e os obrigou a explicarem o que partes eles tinham encenado na peça. Quando o autor da confusão não podia mais ser preso, o próximo passo foi inquirir aqueles que, tendo o poder de impedir, haviam permitido o espetáculo, escondendo o caso todo por tanto tempo. Um que se destacou acima do restante em autoridade e nome, (por ser o grande mestre Lauret) percebeu que poderia ser preso de forma mais respeitosa na casa de um dos Comissários, (como eles os chamam.) Outro deles, Morinus, o segundo depois dele, recebeu ordens de permanecer em casa. Enquanto isso, o inquérito prosseguia. O que foi descoberto, eu não sei: ele agora está intimado a comparecer numa citação de três dias curtos, como eles agora chamam. Tanto por uma comédia.

Certos teólogos facciosos perpetraram outro feito igualmente maligno e talvez quase tão audacioso. Quando eles procuraram as lojas dos livreiros, entre os livros que eles trouxeram, eles apreenderam o livro que é chamado Le Miroir de L'Ame Pecheresse [O Espelho da Alma Pecadora], leitura que eles queriam proibir. Quando o Rainha foi informada disso, ela chamou o rei seu irmão e contou a ele que ela tinha escrito o livro. Através de cartas endereçadas aos mestres da Academia de Paris ele exigia que eles garantissem a ele se tinham examinado o livro, e se eles tinham o classificado entre aqueles de religião doentia; e que se o consideravam de tal modo, que eles explicassem as razões de sua opinião. Referindo-se a todo o processo, Nicolas Cop, o médico, no momento o reitor, relatou o caso para as quatro faculdades de artes, de medicina, de filosofia, de teologia e de lei canônica. Entre os mestres de artes a quem ele se dirigiu primeiro, ele se dedicou na exposição de discurso longo e amargo contra os doutores, por causa de seu comportamento impetuoso e arrogante com sua majestade a rainha. Ele os aconselhou a não interferirem de forma alguma em questões tão perigosas, se não quisessem incorrer no desagrado do rei, nem se colocarem contra a rainha, a mãe de todas as virtudes e de todo bom aprendizado. Por último, que eles não deviam tomar sobre si a culpa desta ofensa, para não encorajarem a presunção daqueles que estavam sempre prontos a entrar em situações encobertas com o pretexto que isso era o feito da Academia com a qual eles tinham se comprometido, sem que a Academia estivesse de modo algum ciente disso. Era a opinião de todos eles que o ato deveria ser desmentido.

Os teólogos, canonistas e médicos, eram todos da mesma opinião. O reitor informou o decreto de sua ordem; em seguida, o deão da Faculdade de Medicina; em terceiro lugar, o mestre de Direito Canônico; em quarto, a Faculdade de Teologia. Le Clerc, o sacerdote da paróquia de Santo André, teve a última palavra, sobre quem caiu toda a confusão, outros se afastando dele sumiram de vista. Em primeiro lugar ele elogiou, em expressão sublime, a retidão do Rei, a firmeza destemida com que até então tem se portado como um protetor da fé. Que havia intrometidos que se dedicavam em perverter essa excelente pessoa, que também estavam associados pela destruição da faculdade sagrada; que ele, no entanto, sustentava uma expectativa confiante de que eles não teriam sucesso em seus desejos e que, em oposição a tal firmeza que ele sabia que o rei possuía. Que como considerada a matéria em mãos, ele foi de fato nomeado pelo decreto da Academia ao cargo; que nada, no entanto, foi menos intentado por ele do que tentar algo contra a rainha, uma mulher tão adornada por conversa piedosa, bem como pela religião pura, em prova de que ele aduziu a reverência com o qual ela tinha observado o rito do funeral em memória de sua falecida mãe; que ele tomou como livros proibidos, ambas produções obscenas, — Pantagruel e a Floresta de Amores, e outros da mesmo cunho; que, nesse ínterim, ele tinha colocado de lado o livro em questão como digno de desconfiança, porque foi publicado sem a aprovação da faculdade, em fraude e contravenção do decreto, pelo qual foi proibido levar adiante qualquer coisa que dissesse respeito da fé sem o conselho e aprovação da faculdade; que, em uma palavra, esta foi sua defesa, que o que foi levado em questão tinha sido feito sob garantia e ordem da faculdade; que todos eram participantes na ofensa, se houvesse algum, embora eles possam negar isso. E tudo isto foi dito em francês, para que todos pudessem entender se ele falou a verdade; todos alegaram, no entanto, que ele se declarou este pretenso desconhecimento a título de desculpa. Estavam presentes também o Bispo de Senlis, L'Etoile, e um dos chefes do palácio. Quando Le Clerc terminou de falar, Parvi disse que ele tinha lido o livro, — que ele não tinha encontrado nada que exigisse expurgação a menos que ele tivesse esquecido sua teologia.

Finalmente, ele exigiu que fosse feito um decreto pelo qual eles pudessem satisfazer o Rei. Cop, o reitor, anunciou que a Academia não reconhecia essa censura em seus termos; que eles não aprovavam nem homologavam a censura pela qual o livro em questão foi classificado entre os livros proibidos ou suspeitos; que aqueles que a tinham feito deviam olhar para ela, sobre que bases estavam defendendo o processo; que cartas deveriam ser preparadas no devido tempo, por meio das quais a Academia pudesse se desculpar diante do rei, e também agradecer por ele ter tão gentilmente se dirigido a eles de forma paternal. O diploma real foi produzido, pelo qual a permissão foi concedida ao Bispo de Paris para nomear os pregadores que quisesse para as diferentes paróquias, onde eles tivessem sido escolhidos de antemão pela vontade dos paroquianos; a principal influência sendo apreciada por aqueles que eram mais resistentes e possuídos de um furor sem sentido, os quais consideravam zelo, tal como o de Elias, com o qual, no entanto, ele era zeloso pela casa de Deus. — Adeus.

[Autógrafo latino original — Biblioteca de Berna. Volume 141]

Tradutor: Rev. Antônio dos Passos Pereira Amaral, ministro presbiteriano, cursando Mestrado (MDiv) em Teologia Histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper/SP.

Fonte: REFORMADOS DO SÉCULO XVI



Sobre o autor: João Calvino

João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino se converteu, por influência de seu primo Robert Olivétan.

Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.

Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família "Cauvin" para o latim Calvinus deu a origem ao nome "Calvino", pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como "padre". Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.[1]

Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã - uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana.

Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: "Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo".

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Última atualização: 31/07/2020 20:30:00



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